Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Texto também disponível em: dehonianosbre.org
“Alguns se perguntam se esta festa não é uma duplicata, pois temos uma referência clara da Transfiguração no 2º Domingo da Quaresma. A essa dúvida, a resposta é negativa, porque no tempo quaresmal não temos uma festa propriamente dita da Transfiguração. De fato, o texto evangélico é proclamado no contexto do caminho quaresmal de purificação e iluminação dos catecúmenos e de toda a comunidade cristã em direção à celebração pascal” (Cristo festa da Igreja, pág. 435).
Sem entrarmos nas razões históricas que motivaram essa celebração milenar na Igreja tanto do Oriente quanto do Ocidente, estamos diante de um acontecimento luminoso para a nossa fé eclesial. Como afirmou S. João Paulo II, a transfiguração do Senhor “pode ser tomada como ícone da contemplação cristã. Fixar os olhos no rosto de Cristo, reconhecer o seu mistério no caminho ordinário e doloroso da sua humanidade, até perceber o brilho divino definitivamente manifestado no Ressuscitado glorificado à direita do Pai, é a tarefa de cada discípulo de Cristo; é, por conseguinte, também a nossa tarefa”(Rosarium Virginis Mariae, 9).
Portanto, a celebração da Festa da Transfiguração do Senhor nos convida à contemplação do mistério da Cruz vitoriosa. Tabor e Calvário são inseparáveis, pois neles se dá uma única revelação: Deus nos fala no seu Filho, e Nele nós falamos com Deus. Ao transfigurar-se diante de três dos seus discípulos: Pedro, Tiago e João, Jesus não institui um pequeno grupo de privilegiados, uma elite iluminada, mas faz deles testemunhas concretas, inconfundíveis, que desempenharão na comunidade primitiva um papel fundamental para o anúncio de que o crucificado não é um derrotado, que a luz do Tabor atingiu o seu brilho mais intenso na cruz do Gólgota.
O episódio da Transfiguração condensa todo o mistério pascal, pois assim como no Antigo Testamento a celebração da Páscoa antecipava o evento do êxodo, isto é, antes mesmo de saírem do Egito já celebravam no rito a libertação, a Transfiguração do Senhor preanunciou o fulgor da sua ressurreição, antes mesmo que isto acontecesse. Por conseguinte, a glória do Tabor não tem sentido se não se sobe o calvário da dor; pois a luz resplandecente do monte da glória provém Daquele que morreu e ressuscitou, e não de quem se refugiou sob a comodidade de uma tenda, cuja sombra impede a penetração da luz.
A luz do Tabor iluminou o caminho da dor, caso contrário não seria possível enxergá-lo, o que resultaria consequentemente em abandoná-lo. A luz do Tabor iluminou a mente dos discípulos para poderem compreender que a Palavra de Deus não é simplesmente um conjunto de letras gravadas em pedras, mas Palavra viva, pois é uma pessoa e não apenas um livro; é o próprio Filho amado, o Verbo eterno a quem se deve escutar. Se Moisés precisava da tenda da reunião para falar de Deus ao povo e do povo a Deus, agora com a luz do Tabor não há mais necessidade de tendas para ouvir a voz de Deus: é Jesus que, ao armar sua tenda entre nós e em nós, expressou a mais convincente e persuasiva palavra do Pai; isto é, que Ele nos ama de tal modo a ponto de não poupar nem mesmo o Filho, a fim de que o mundo tenha vida plena. Moisés e Elias, o testemunho da Lei e dos Profetas, não conversam diretamente com os discípulos, mas com Jesus. Isto significa que é Jesus o autêntico intérprete das Escrituras, pois é Nele que elas se cumprem. Os três discípulos são as testemunhas do Novo Testamento que atestam a realização das promessas antigas, ou seja, que o próprio Deus iria falar diretamente com o seu povo, e não haveria mais necessidade de intermediários.
A experiência do Tabor é intraduzível, por isso, mais do que explicações do episódio, os evangelistas tentaram ajudar a Igreja a contemplar o mistério do Filho amado de Deus na sua totalidade, sem isolar os momentos de glória dos momentos de dor. Não há um Cristo glorioso que não seja o crucificado, nem há um crucificado que esteja privado da glória. Se atualmente há tanto resistência em contemplar o crucificado, inclusive nas nossas igrejas, certamente isso é fruto de uma visão esquizofrênica do Mistério. Contemplar o Cristo do Tabor exige escutar o que Ele diz: “Quem quiser me seguir, renuncie a si mesmo tome a sua cruz e me siga”. Portanto, é incoerente anunciar o Transfigurado do Tabor se não somos capazes de seguir o Traspassado do Calvário. Trocar a cruz pelas tendas é traí-lo, é abandonar o seu caminho, é certamente maravilhar-se com o fulgor do seu rosto resplandecente, mas é ironicamente tapar os ouvidos à sua palavra que nos convida a descer do monte para continuar o caminho. Só a luz da cruz pode vencer as sombras das tendas.
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